"O Crime é Meu", de François Ozon, coloca em cena uma inusitada disputa – Culturadoria

8 de julho de 2023 Off Por admin

Mais recente filme do diretor francês, “O Crime é Meu” entra em cartaz nesta quinta-feira, com um elenco estelar

Carolina Cassese | Especial para o Culturadoria

Em “O Crime é Meu”, mais recente trabalho do francês François Ozon, que entra em cartaz na capital mineira nesta quinta-feira (Una Belas Artes e Cineart Ponteio), a confissão de um crime é apenas o ponto de partida para o desenrolar de uma história muito mais intrincada.

A atriz Nadia Tereszkiewicz, em cena de “O Crime é Meu”, de François Ozon (Imovision)

Ambientada na França dos anos 1930, a trama de “O Crime é Meu” centra-se na vida das amigas Madeleine (Nadia Tereszkiewicz) e Pauline (Rebecca Marder). As duas jovens vivem em meio a várias dificuldades financeiras, inclusive para pagar o aluguel do simplório apartamento que habitam.

Tudo muda, porém, quando a primeira é acusada de assassinar Montferrand, um famoso produtor (Jean-Christophe Bouvet, da série “Emily em Paris”). É que, aspirante a atriz, Madeleine supostamente foi a última pessoa a vê-lo vivo. Aliás, ela não se furta inclusive em revelar que, durante o encontro, foi vítima de assédio. Apesar de grave, a acusação de assassinato, porém, acaba tendo repercussões muito positivas na vida das duas moças. É que, por ser uma advogada recém-formada, Pauline acaba assumindo a defesa de Madeleine.

Premissas inusitadas

“O Crime é Meu”, adaptação da peça homônima escrita por Georges Berr e Louis Verneuil, parte de várias premissas inusitadas e se desenrola a partir do absurdo. Primeiramente, vale dizer que o humor presente em boa parte das cenas ilustra bem a versatilidade de François Ozon. Em 2021, o diretor apostou suas fichas em um drama (“Está Tudo Bem”, com André Dussollier e Sophie Marceau) sobre a eutanásia. Já no ano passado, lançou “Peter Von Kant”, baseado na obra de Rainer Werner Fassbinder (o longa está ainda inédito no circuito brasileiro).

Cena de “Está Tudo Bem”, também de Ozon, com Sophie Marceau e André Dussolier (Frame)

No filme que chega agora ao Brasil, espectador vai se deparar com cenas primorosas. Vale mencionar, por exemplo, uma lindíssima tomada dos telhados de Paris. Tal qual, os excelentes momentos que as protagonistas de “O Crime é Meu” transcorrem no interior do cinema. Assim, as cenas exibidas na tela são reveladoras até mesmo para nós, espectadores do filme de Ozon.

Isabelle, magnetizante

Ainda sobre versatilidade, é difícil deixar de mencionar o papel da ilustre Isabelle Huppert. A atriz, na verdade, está no elenco de três filmes atualmente em cartaz na cidade. Além de atuar em “O Crime é Meu”, nos longas “Uma Vida Sem Ele” e “A Sindicalista”. Tal presença revela não só a personalidade non-stop da atriz, mas sua potência como uma das principais figuras do cinema francês atual.

Isabelle Huppert em cena, ladeada por Nadia Tereszkiewicz e Rebecca Marder (Imovision)

Mesmo que Huppert apareça apenas na última parte de “O Crime é Meu”, sua atuação é, como de costume, magnetizante. Um dos maiores méritos do filme, aliás, é justamente reunir o melhor de diferentes gerações do cinema francês. De um lado, há Huppert, Fabrice Luchini e André Dussolier, sempre impecáveis. Da mesma forma, do outro, as jovens Marder e Tereszkiewicz, que ganham um merecido espaço na cena contemporânea. O filme traz, ainda, Dany Boon.

Temas caros aos dias atuais

Parte da crítica internacional ressaltou ainda o fato de que, mesmo sendo ambientada em 1930, a história que conduz “O Crime é Meu” trata de temas caros à atualidade. Entre eles, o debate acerca da opressão sistêmica contra as mulheres.

Edouard Sulpice interpreta um herdeiro “mauricinho” no filme de Ozon (Imovision)

Se em nossa realidade homens matam mulheres por motivos banais e ainda se sentem no direito de fazer piadas a respeito, na trama de “O Crime é Meu” há uma propositada inversão. Assim, são elas que assassinam os pares masculinos por razões supostamente ordinárias, numa espécie de vingança contra abusos naturalizados cotidianamente. A partir dessa alteração ficcional, Ozon evidencia o absurdo da realidade em que estamos inseridos.

Subversão de expectativas

Além disso, é interessante observar que várias das personagens femininas de “O Crime é Meu” subvertem expectativas e criticam ideais do amor romântico. Quando começa a ganhar confiança, Pauline defende que o casamento não deve ser imposto às mulheres, já que elas são seres completos. A personagem Simone (Évelyne Buyle), por sua vez, deixa claro que homens “cavalheiros demais” muitas vezes não passam de sujeitos insistentes disfarçados de príncipes encantados (sim, o estereótipo do nice guy já existia nos anos 1930).

Dany Boon e Fabrice Luchini: os personagens dos dois garantem boas gargalhadas (Imovision)

Percebemos, portanto, que elas não estão simplesmente sentadas, esperando ser resgatadas por alguma figura montada num cavalo branco. São personagens que pensam, conspiram, trabalham, entram em ação.

Suspense

A comédia “O Crime é Meu” também não irá decepcionar os fãs de narrativas policiais. Inclusive por capturar a atenção do espectador e posterga a revelação de peças importantes do quebra-cabeça. Considerando que duas personagens importantes da trama são atrizes, há, ainda, um jogo interessante acerca do que está dentro e fora de cena. Em determinados momentos, até o espectador pode ficar em dúvida (mesmo que apenas por instantes) acerca do que de fato aconteceu no universo diegético.

Isabelle Huppert e André Dussollier, à frente, e, ao fundo, Rebecca Marder e Nadia Tereszkiewicz (Imovision)

Contando com excelentes atores e um ritmo impecável, o longa de François Ozon mostra que é possível, sim, fazer um filme de humor inteligente nos dias de hoje, sem reforçar uma série de estereótipos reacionários e ultrapassados. O diretor francês foge do óbvio e, assim, entrega um excelente trabalho, que mais do que justifica sua fama.