Os aspectos revolucionários de Godard segundo um estudioso – Culturadoria

30 de maio de 2023 Off Por admin

Em passagem por BH, o professor de história e de estética da Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle) falou sobre o legado de Jean-Luc Godard

Carolina Cassese | Especial para o Culturadoria

Termina nesta terça-feira, no Cine Humberto Mauro, a Mostra “Adeus a Godard”. Iniciada no dia 3 de maio, a iniciativa contou com vários chamarizes – em primeiro lugar, claro, pela exibição de filmes icônicos do diretor franco-suíço homenageado, como, por exemplo, “O Desprezo”, bem como “Acossado” e “A Chinesa”.

O crítico e pesquisador Michel Marie (FCS/Divulgação)

Falecido em 13 de setembro do ano passado, aos 91 anos, Jean-Luc Godard também teve, na mostra da Humberto Mauro, seu modo de fazer cinema esquadrinhado em um curso. “Godard, revolucionário da linguagem cinematográfica” foi ministrado em duas tardes por Michel Marie, que é professor emérito da Universidade Sorbonne e expoente de relevo internacional no âmbito da história e teoria do cinema.

Na oficina, Marie, que tem vasta bibliografia publicada, acima de tudo destacou alguns dos elementos que tornaram Godard, em síntese, um revolucionário da linguagem cinematográfica. Entre eles, a montagem inventiva, assim como a presença de gírias em diálogos e a maneira que alguns personagens se dirigiam diretamente ao espectador.

Conceito controverso

Marie se propôs a analisar primordialmente duas obras de Godard de maneira mais detalhada: “Acossado” (1961) e, ainda, “O Desprezo” (1963). Sobre o último, aliás, que contou com a presença do renomado diretor Fritz Lang no elenco, Marie destacou ainda o fato de que a obra trata sobretudo da história do cinema e de um suposto fim da sétima arte, temas definitivamente caros ao diretor franco-suíço.

O palestrante comentou, ainda, sobre o fato de que, do ponto de vista estritamente comercial, o cinema de Godard não pode ser considerado “um sucesso”, ao menos dentro de uma certa perspectiva: a dos estadunidenses. “Para eles, afinal, até mesmo um filme de (Alfred) Hitchcock que não alcançou um número tal de espectadores, como resultado, pode ser visto como um fracasso. Contudo, esse definitivamente não era o ponto de vista de Godard”, afirmou, ainda durante a segunda aula.

Ao levarmos em conta, porém, a forma como Godard mudou os códigos cinematográficos – não por outro motivo, já com seu primeiro longa entrou para a história da sétima arte -, é fácil compreender que definitivamente existem outros conceitos de sucesso por aí. Logo, outros jeitos de contar histórias.

Em entrevista ao Culturadoria, Michel Marie falou mais sobre o cinema de Godard, bem como indicou filmes para quem quiser se iniciar neste universo.

Confira, a seguir, alguns tópicos

Poderia falar sobre alguns elementos que fazem de Godard um revolucionário da linguagem cinematográfica?

Godard respeita muito pouco os códigos narrativos do cinema tradicional. Isso perturba muito a forma de contar uma história. Ele não hesita em desenvolver certas sequências de forma ampliada, por até meia hora. Pratica uma edição muito inovadora baseada em ritmo e elipse. E frequentemente misturava elementos documentais com ficção.

O senhor destaca “Acossado” como um dos filmes mais relevantes do cinema moderno. Quais seriam as características desse filme que o tornam tão importante assim?

É um filme muito pessoal, no qual Godard destaca a descontração do personagem principal e seu senso de transgressão. O personagem fala diretamente com o espectador, de forma provocativa. Usa a linguagem cotidiana com gírias e palavras rudes, como “merda, isso me irrita, sua estúpida”.

Para quem ainda não conhece a obra de Godard, quais filmes seriam um bom ponto de partida?

Diria para começar com “Acossado”, “Viver a Vida”, “O Desprezo” e “O Demônio das Onze Horas” (“Pierrot Le Fou”)

Obras de Fuller e Lang também foram apresentadas no programa desta semana (do curso). Como a obra de Godard interage com a desses diretores?

Godard costumava citar Lang e Fuller, que atuam em “O Desprezo” (Lang) e “O Demônio das Onze Horas” (Fuller). Godard apreciava sobretudo a loucura dos filmes de Fuller, como “Shock Corridor” e seu lirismo, assim como seus filmes de guerra, como “Beyond Glory” e “The Marauders Strike”. Similarmente, seus faroestes, como “Judgment of the Arrows” e “Forty Killers”.

Sobre o trabalho de Lang, Godard frequentemente cita “M le Maudit” (“M, O Vampiro de Dusseldorf”), “Metropolis”, “Rancho Notorious” (“O Anjo dos Malditos”) ou “The Smugglers of Moonfleet”. Godard admirava a precisão da encenação dele.

As questões políticas sempre estiveram próximas de Godard, que dirigiu (e codirigiu) longas-metragens como “La Chinoise” e “Loin du Vietnam”, confere?

Godard evoluiu muito em sua biografia política. Inicialmente, era um anarquista de direita. Com “Le Petit Soldat”, pensa na revolução argelina. Aproximou-se dos jovens comunistas na época do “Masculin Féminin”, em 1965, e “Made in USA”, do ano seguinte. Depois se interessou pelo maoísmo a partir de 1967. Fez filmes militantes dentro do grupo Dziga Vertov.

“Tout va bien” mostra possibilidades importantes para os filmes de esquerda. Godard se mobiliza pela causa palestina com “Here and Elsewhere”. Seu filme mais sombrio e sinistro, todavia, é o “Numéro Deux”.

A partir de “Passion” e de “Prénom Carmen”, redescobre a espiritualidade, assim como questiona o mito da Virgem Maria por meio do filme “Je Vous Salue Marie”. Por outro lado, a última parte de sua obra é marcada pela guerra na Bósnia (“Nossa Música”). Em suma, Godard nunca deixou de questionar as certezas ideológicas. Logo, a(s) sua(s) história(s) do cinema são uma verdadeira história das guerras do século XX.

Pensamento cíclico

Vitor Miranda, gerente do Cine Humberto Mauro, contou que os filmes que foram exibidos na Mostra Adeus a Godard são parte de um pacote de cópias restauradas oferecido pela cinemateca da Embaixada da França no Brasil e o Instituto Francês. “Em complemento, escolhemos, ainda, alguns dos filmes mais recentes de Godard para, assim, desenvolver um pensamento cíclico da obra dele. Bem como títulos norte-americanos de diretores que Godard admirava, sobre os quais escreveu e que inclusive reverenciou em seus filmes”.

Desconstrução

Miranda lembra que Godard era, acima de tudo, um diretor extremamente versátil. Um diretor que, antes de mais nada, sabia circular entre inúmeras referências. “E que, assim, fez filmes em diversos formatos e propostas estéticas. Essa forma de experimentação e essa multiplicidade de discursos é essencialmente contemporânea”, situa.

Não por outra razão, ele acredita que o legado de Godard se reverbera nessa forma única “de se pensar e desconstruir a linguagem cinematográfica que muitos diretores e pensadores fizeram e fazem graças ao seu trabalho”.