Depois de faturar seis prêmios em Gramado, "Noites Alienígenas" entra em cartaz nas salas de cinema – Culturadoria

3 de abril de 2023 Off Por admin

Dirigido por Sérgio de Carvalho, “Noites Alienígenas” parte da periferia de Rio Branco para tratar de temas universais

Por Patrícia Casses | Editora Assistente

A performance de “Noites Alienígenas” na mais recente edição do Festival de Cinema de Gramado, realizada em agosto do ano passado, acabou por despertar a curiosidade do público cinéfilo Brasil afora, que passou a ficar de olho na estreia do filme em circuito nacional.

Filme “Noites Alienígenas”. Vitrine/Divulgação.

Isto porque o longa-metragem de Sérgio de Carvalho, que à época fazia na serra gaúcha a sua première oficial no Brasil (já havia passado pelo Festival de Cotemburgo, na Suécia) levou para casa nada menos que seis kikitos: Melhor Filme, Ator (Gabriel Knoxx), Atriz Coadjuvante (Joana Gatis), Ator Coadjuvante (Chico Diaz), Menção Honrosa ao ator Adanilo Reis e o prêmio do Júri da Crítica. Convenhamos, não é pouco.

A boa notícia é que, desde quinta-feira, o filme está em exibição nos cinemas brasileiros, com Belo Horizonte inclusa.

O início de tudo  

Pode soar como exagero, mas a verdade é que a semente da iniciativa pode ser localizada há cerca de 20 anos, quando o paulista Sérgio de Carvalho se mudou para Rio Branco, no Acre. 

“Vim recém-formado (ele cursou Cinema no Rio de Janeiro), em busca da floresta, dos povos da floresta, dos povos tradicionais, com quem trabalhei bastante”, contou ele, na entrevista coletiva para o lançamento do filme, realizada no formato online, de modo a reunir jornalistas de todo o Brasil.

Sérgio contou que, naquele início dos anos 2000, ao chegar a Rio Branco, ele de pronto se rendeu às evidências de que a realidade ao seu entorno era bem diferente do que a que imaginava. “Realmente me surpreendi. Estava muito longe do meu imaginário enquanto pessoa que ainda não conhecia a região (Norte)”, admite.

Uma das coisas que mais lhe chamaram a atenção, rememora, foi a quantidade expressiva de usuários de pasta base de cocaína. Sérgio se refere à sobra da cocaína, que vem do processo de refinamento da droga, que, por sua vez, precede o envio da coca para o resto do Brasil.

“Aqui, a gente vive numa região de fronteira de países produtores (da droga)”, diz, referindo-se ao fato de que grande parte da cocaína que circula pelo território brasileiro (em particular, com destino ao Sudeste, São Paulo em específico) entrar pelo Acre (muitas vezes, por Assis Brasil). “Essa realidade da dependência química me tocou muito”.

Assista ao trailer de “Noites Alienígenas”.

Em 2011, o livro “Noites Alienígenas”

A observação do fenômeno acabou inspirando Sérgio de Carvalho a escrever o livro “Noites Alienígenas”, publicado em 2011, pela editora Pindaíba. Ali, muitos leitores falavam ao autor sobre o potencial de a narrativa ser transposta para a sétima arte.

O livro, comenta Sérgio, mergulha no universo da dependência química, mas também ressalta a questão da perda da identidade. “Porque, se a gente for pensar, essa periferia das cidades amazônicas é formada pelas pessoas que foram expulsas de seus territórios de origem, principalmente aqui no Acre. Muitas vezes, expulsas pelos extrativistas”, descreve.

No entanto, já com a possibilidade do filme no horizonte, quando foi partir para o roteiro, Sérgio de Carvalho percebeu que a realidade tratada no livro, pelo fato de ele ter sido lançado há mais de dez anos, já estava defasada. “A região Norte foi muito impactada com a violência das mudanças na rota do narcotráfico. Então, a gente viu o Acre ser tomado pelo crime organizado de uma maneira muito rápida, muito enérgica e muito violenta”.

O diretor se refere particularmente a facções de organizações que já atuavam no Sudeste. “Isso impactou a sociedade de uma maneira brutal”, diz, acrescentando que muitas dessas facções, como sói acontecer em outros centros, passaram a se rivalizar, desaguando nas chamadas “guerras”.

Mais que uma questão restrita ao Acre, salienta Sérgio de Carvalho, trata-se de uma realidade da Amazônia num espectro bem mais amplo. “A gente sabe que a cidade de Manaus também não passou distante, e que o estado de Rondônia também está vivenciando isso. A situação também chega à floresta, às comunidades indígenas, aos povos tradicionais”.

Atualização necessária de conteúdo

Naquele momento, diante da gravidade do que estava se recrudescendo, Sérgio de Carvalho ainda constatava, perplexo, que o assunto era pouquíssimo tratado no Brasil. “E quando se fala disso, por vezes ainda é com uma certa distância. Então, senti necessidade, junto aos roteiristas – Camilo Cavalcanti, que foi um grande parceiro nos tratamentos do roteiro, e Rodolfo Minari -, de atualizar o conteúdo da obra. E ela (atualização) se deu justamente mostrando o impacto dessa chegada de facções criminosas”.

Em meio a um cenário sombrio, porém, ele detecta um contraponto alentador na cultura. Em particular, a urbana. “As culturas urbanas, como o próprio nome diz, são muito características das cidades. Porém, aqui, no Acre, as pessoas (que a movimentam) estão sempre trabalhando com elementos da floresta, da identidade amazônica. Acho muito interessante essa pulsão que a juventude das periferias mostra e que acaba fazendo um contraponto àquela realidade dura”.

Filme “Noites Alienígenas”. Foto: Wesley Barros.

Na tela

Produzido por Karla Martins, Pedro von Krüger e pelo próprio Sérgio de Carvalho, “Noites Alienígenas” traz, no elenco, o veterano Chico Diaz ao lado de expoentes talentosos da nova geração, como Gabriel Knoxx, Adalino Reis e Gleici Damasceno, todos nascidos na região. Também marcam presença Joana Gatis, Kika Sena, Chica Arara, Bimi Huni Kuin e Duace, entre outros não menos importantes.

A acreana Gleici Damasceno, você sabe, se tornou nacionalmente conhecida por ter participado do BBB 18, do qual saiu campeã. No filme, ela interpreta Sandra, uma jovem mãe com a qual a atriz diz se identificar pelo lado sonhador.

Na entrevista, Gleice pontuou o quanto estar no filme foi um grande desafio. “Despertou em mim várias sensações. Tudo era novo e especial. Aliás, a gente sempre acreditou que o filme tinha algo de especial. Hoje entendo que o que aconteceu ali, no set, foi algo muito lindo”, diz ela, que já conhecia Sérgio de Carvalho antes de integrar o elenco. “Era meu amigo, assim como a Karla (Martins). Então, me senti confiante e encarei como um aprendizado”.

Um veterano no elenco

Aos 64 anos, Chico Diaz, diz que foi ao Acre para aprender e apreender “aquela paisagem”. “E me refiro à humana e à geográfica. Agradeço muito a oportunidade de estar neste filme”.

Para ele, Alê, o seu personagem, traz características que apontam no sentido de que o passado é doce frente ao que vemos hoje e ao que vem por aí.

“Na comparação com os tempos atuais, podemos ver (por meio dele) vemos a poética que havia, uma ingenuidade frente ao rolo compressor de um capitalismo voraz, que está trazendo tantas consequências, principalmente para as periferias”.

E arremata: “Pra mim, foi muito gratificante ver como este filme tomou corpo, (adquirindo) essa força, essa potência. E acho que esses garotos (referindo-se aos jovens atores do elenco) estão com uma possibilidade interessante de registrar o nosso povo. Porque o mais importante a ser representado é o povo, com suas procuras, suas ambições, suas lutas, suas fibras”.

Diaz driblou a pergunta se consideraria seu personagem mocinho ou vilão. “Não julgaria. Ele está na roda vida, sem julgamentos, sem mocinho, sem vilão. Ali, ele cumpre a função de pai, de um guia… E de comerciante também. Penso que essa questão de julgar sumariamente pessoas ou personagens não contribui para a discussão. Posso dizer que acho ele doce. Que se torna uma memória doce (de outros tempos)”.

Filme “Noites Alienígenas”. Vitrine/Divulgação.

Descentralização necessária

Em seu estágio inicial, em 2018, a produção de “Noites Alienígenas” se beneficiou das políticas de descentralização da produção audiovisual em vigor – em particular, do último edital lançado antes de o Ministério da Cultura ter sido desativado, na gestão federal iniciada em 2019.

Na coletiva, a produtora Karla Martins falou sobre a importância deste incentivo, citando que a centralização de recursos para o Sudeste sempre lhe pareceu um resíduo do Brasil colonial que precisa ser extirpado. “Precisa mesmo. Quando a gente fala Brasil, precisamos enxergar o nosso país todo, entender o que é esse país todo. Entender a fala desse Brasil, as camadas desse Brasil”.

Sendo assim, Karla advoga que promover a descentralização de recursos para a cultura é uma política que se justifica não só pensando nas pessoas que desejam fazer filmes (“ou qualquer outro processo artístico”), mas não têm a oportunidade de realizá-los, como para que o país seja generoso com ele mesmo. “Que o nosso povo se olhe”.

E arremata: “Não é possível viver num país desse tamanho e que a gente tenha que ir para o Sudeste para acontecer. Isso é desumano. Imagina o Adanilo (Reis), um ator fantástico. Olha a Gleici (Damasceno), olha o Gabriel (Knoxx). Olha a Joana (Gatis), que, de certa maneira, também veio de uma parte do Brasil que é fora do eixo, ainda que Nordeste esteja em outra posição (a atriz é pernambucana). Mas é quase como se a gente tivesse que galgar um outro lugar do não lugar, entende?”.

O mundo de olho na Amazônia

Karla entende que, nos dias atuais, as produções que vêm de fora do eixo tradicional permitem que outras pessoas que sonham em fazer cinema, e que também estão em outros pontos distantes do Sudeste, saibam que, sim, é possível. “É muito possível. É possível que quem está na ponta, na borda, no periférico, consiga acontecer no centro”.

A produtora abarca, em sua fala, também os profissionais que operam nos bastidores, os técnicos. “Temos uma gama de pessoas que precisa se desenvolver fazendo. A gente gostaria de ter tido uma equipe totalmente do Acre ou toda amazônica. E chamo atenção para isso porque a Amazônia é o grande território do Brasil e do mundo. O mundo inteiro está olhando para a Amazônia com muito cuidado, pelo que significa para a vida das pessoas”.

Sendo assim, ela é confiante que é desse lugar também que virá uma potência cultural. “Noites Alienígenas”, completa ela, embora seja um filme urbano, se configura, na verdade, como uma polifonia da vida da floresta. “A Amazônia não é um centro urbano com uma floresta, mas uma floresta com muitas urbanidades”.

Não bastasse, ela diz que, de certa maneira, “Noites Alienígenas” se propõe a fazer um retrato não só das cidades amazônicas, mas do Brasil, “já que, hoje, outras regiões também sofrem com a chegada das facções, com a violência”. “O filme fala de um poder paralelo que talvez nem seja mais tão paralelo assim”, lamenta Karla.